
A Reforma da Previdência, implementada pela Emenda Constitucional (EC) 103/2019, trouxe consigo uma série de mudanças significativas no sistema previdenciário brasileiro.
Entre as alterações, uma das que mais gerou controvérsia e debates acalorados foi a exclusão do menor sob guarda do rol de dependentes elegíveis à pensão por morte.
Essa medida, aparentemente técnica, tem profundas implicações sociais e jurídicas, afetando diretamente a vida de inúmeras crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Este artigo se propõe a analisar de forma profunda e detalhada essa controversa exclusão, explorando seus fundamentos, impactos e as possíveis alternativas para mitigar seus efeitos negativos.
Para tanto, partiremos do contexto da Reforma da Previdência, passando pela análise da legislação pertinente, a jurisprudência dos tribunais superiores e os argumentos favoráveis e contrários à medida.
O Contexto da Reforma da Previdência
A Reforma da Previdência foi apresentada como uma medida necessária para garantir a sustentabilidade do sistema previdenciário brasileiro, que, segundo o governo, enfrentava um déficit crescente e insustentável.
A proposta de reforma, que tramitou no Congresso Nacional sob forte resistência de diversos setores da sociedade, visava, entre outros objetivos, reduzir os gastos com benefícios previdenciários, aumentar a idade mínima para aposentadoria e alterar as regras de cálculo dos benefícios.
Nesse contexto de contenção de gastos, a exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte foi justificada pelo argumento de que haveria muitas fraudes no processo de guarda, onde, supostamente, avós requeriam a guarda dos netos apenas para lhes conferir o direito à pensão.
Essa alegação, no entanto, não encontra respaldo na realidade dos fatos, como veremos adiante.
A Legislação Pertinente: Uma Análise Detalhada
A EC 103/2019, em seu artigo 23, § 6º, estabelece que, para fins de recebimento da pensão por morte, equiparam-se a filhos exclusivamente o enteado e o menor tutelado, desde que comprovada a dependência econômica, excluindo expressamente o menor sob guarda.
Essa redação representa uma mudança radical em relação à legislação anterior, que, em consonância com o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, assegurava o direito à pensão por morte ao menor sob guarda, desde que comprovada a dependência econômica.
Para compreendermos a dimensão dessa alteração, é fundamental analisarmos os conceitos de filho, enteado, menor tutelado e menor sob guarda, bem como os requisitos para a concessão da pensão por morte em cada caso.
Filho
De acordo com a legislação previdenciária, o filho que tem direito à pensão por morte é aquele não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos, ou o filho inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave, de qualquer idade.
Enteado
O enteado é aquele que, não sendo filho biológico do falecido, era por ele assim considerado, em razão de ser filho de seu cônjuge ou companheiro(a), e que, em decorrência dessa situação, o falecido contribuía com seu sustento e/ou educação.
Para ter direito à pensão por morte, o enteado deve comprovar a dependência econômica com o falecido.
Menor Tutelado
O menor tutelado é aquele que se encontra fora do poder familiar, cujo o falecido era constituído de poderes e encargos para protegê-lo e zelar por ele.
A tutela é utilizada quando o menor não tem pais conhecidos ou quando estes são falecidos, suspensos ou destituídos do poder familiar.
Assim como o enteado, o menor tutelado só terá direito à pensão por morte se comprovada a dependência econômica com o falecido.
Menor Sob Guarda
O menor sob guarda é aquele que, por decisão judicial, é confiado a uma pessoa que não é seus pais, mas que assume a responsabilidade por sua criação, educação e bem-estar.
A guarda pode ser concedida em diversas situações, como nos casos de falecimento dos pais, abandono, negligência ou impossibilidade de exercer o poder familiar.
Os Argumentos Favoráveis e Contrários à Exclusão
A exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte gerou intensos debates entre juristas, assistentes sociais, defensores dos direitos da criança e do adolescente e outros atores sociais.
Os argumentos favoráveis à exclusão se baseiam, principalmente, na alegação de que haveria muitas fraudes no processo de guarda, onde, supostamente, avós requeriam a guarda dos netos apenas para lhes conferir o direito à pensão.
No entanto, essa alegação não se sustenta diante da realidade dos fatos. A concessão da guarda judicial exige a comprovação de requisitos específicos e a intervenção do Juízo de Família, sempre com a participação do Ministério Público, o que evidencia que a vaga alegação de fraude não encontra reflexo na realidade de um processo cível que define a guarda de uma criança a pessoa diversa de seus genitores biológicos.
Além disso, a exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte contraria o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, previsto no artigo 227 da Constituição Federal, que estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A pensão por morte, nesses casos, representa uma importante fonte de renda para garantir a subsistência do menor sob guarda, especialmente quando o guardião não possui condições financeiras suficientes para arcar com todas as despesas.
A exclusão desse direito, portanto, agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade dessas crianças e adolescentes, colocando em risco o seu desenvolvimento integral.
O Impacto da Exclusão na Vida dos Menores Sob Guarda: Um Olhar Mais Detalhado
A exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte não é apenas uma questão jurídica abstrata; ela tem um impacto real e devastador na vida de inúmeras crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Para compreendermos a dimensão desse impacto, é fundamental analisarmos as diversas situações em que a guarda é concedida e as consequências da perda da pensão por morte em cada caso.
Em muitos casos, a guarda é concedida aos avós, tios ou outros parentes próximos, que assumem a responsabilidade pela criação e educação do menor após o falecimento dos pais.
Esses parentes, muitas vezes, já possuem idade avançada e renda limitada, e a pensão por morte representa uma importante fonte de renda para garantir a subsistência do menor.
A exclusão desse direito pode levar à precarização das condições de vida do menor, com dificuldades para arcar com despesas básicas como alimentação, vestuário, educação e saúde.
Em outros casos, a guarda é concedida a pessoas que não possuem laços de parentesco com o menor, mas que se dispõem a acolhê-lo e oferecer-lhe um lar.
Essas pessoas, muitas vezes, já possuem filhos e renda limitada, e a pensão por morte representa um importante auxílio para arcar com as despesas adicionais.
A exclusão desse direito pode sobrecarregar ainda mais o orçamento familiar, comprometendo a qualidade de vida de todos os membros da família.
Além disso, a exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte pode ter impactos psicológicos negativos, como o sentimento de abandono, a insegurança e a dificuldade de adaptação à nova realidade.
É fundamental que esses menores recebam acompanhamento psicossocial adequado para superar esses desafios e garantir o seu desenvolvimento integral.
A exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte, portanto, não é apenas uma questão de economia fiscal; é uma questão de justiça social e de proteção dos direitos das crianças e adolescentes.
É fundamental que a sociedade brasileira se mobilize para reverter essa injustiça e garantir a proteção integral dos menores sob guarda.
A Jurisprudência dos Tribunais Superiores
Diante da controvérsia gerada pela exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte, a questão foi levada aos tribunais superiores, que têm se manifestado de forma divergente sobre o tema.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em diversos julgados, tem mantido o entendimento de que o menor sob guarda tem direito à pensão por morte, com base no princípio da proteção integral à criança e ao adolescente e na interpretação do artigo 227, § 3º, VI da Constituição Federal, que assegura o compromisso do Estado de Direito com a máxima proteção dos direitos fundamentais de menores e adolescentes.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não se manifestou de forma definitiva sobre a questão.
O tema está sendo discutido nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs) 4.878 e 5.083, que questionam a constitucionalidade da exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte.
O julgamento dessas ADINs é de extrema importância, pois definirá se a exclusão da proteção previdenciária dispensada ao menor sob guarda atende aos princípios constitucionais que balizam a proteção dos direitos e garantias dos menores e adolescentes.
Alternativas para Mitigar os Efeitos Negativos da Exclusão
Diante do cenário de incerteza jurídica e dos impactos negativos da exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte, é fundamental buscarmos alternativas para mitigar seus efeitos.
Algumas possíveis soluções incluem:
- Ações Judiciais: Buscar o reconhecimento do direito à pensão por morte por meio de ações judiciais, com base no princípio da proteção integral à criança e ao adolescente e na jurisprudência favorável do STJ.
- Políticas Públicas: Implementar políticas públicas de assistência social que garantam o suporte financeiro e o acompanhamento psicossocial aos menores sob guarda em situação de vulnerabilidade.
- Mobilização Social: Promover a conscientização da sociedade sobre os impactos negativos da exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte e pressionar o STF a julgar favoravelmente as ADINs 4.878 e 5.083.
- Alteração Legislativa: Apresentar projetos de lei que visem revogar a exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte, restabelecendo a proteção previdenciária a esses menores.
Conclusão
A exclusão do menor sob guarda do direito à pensão por morte representa um retrocesso social e jurídico, que contraria o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente e agrava a situação de vulnerabilidade desses menores.
A alegação de que haveria muitas fraudes no processo de guarda não se sustenta diante da realidade dos fatos e não justifica a supressão de um direito fundamental.
Diante desse cenário, é fundamental que a sociedade civil, os juristas, os assistentes sociais, os defensores dos direitos da criança e do adolescente e os poderes públicos se unam para buscar alternativas que mitiguem os efeitos negativos da exclusão e garantam a proteção integral dos menores sob guarda.
A decisão final sobre a questão caberá ao STF, que terá a oportunidade de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a proteção dos direitos e garantias dos menores e adolescentes, assegurando-lhes o direito à pensão por morte e a uma vida digna e com oportunidades.
Em um país que se pretende justo e solidário, não podemos permitir que a busca por economia fiscal se sobreponha à proteção dos direitos das crianças e adolescentes, especialmente daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade.
A pensão por morte, nesses casos, representa muito mais do que um benefício financeiro: é um instrumento de proteção social que garante a dignidade e o desenvolvimento integral dos menores sob guarda.
Hoje, a luta pela garantia dos direitos dos menores sob guarda continua, e a esperança de que a justiça prevaleça permanece acesa.